03 dezembro 2006

Muito barulho por nada




Não acaba o coro de protestos indignados contra nova TLEBS – Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário [DR em pdf] que vem substituir a anterior de 1967 (!).

1. Escritores, cronistas e bloguistas todos a rejeitam emotivamente e usando vários argumentos, de que se salientam:

a) a substituição de “substantivo” por “nome”
b) e a substituição de “oração” por “frase”: “A TLEBS muda, por exemplo, a designação de «substantivo» para «nome» e de «oração» para «frase», que não são conceitos coincidentes” (Maria Alzira Seixo);
c) a dificuldade da nomenclatura de classificação de nomes e adjectivos: “o lado abstruso, aberrante e incompreensível de muitos aspectos da terminologia em questão” (Vasco Graça Moura).

2. Alguns linguistas e professores vieram defender o documento:

A TLEBS não pode ser entendida como um receituário de termos para professores e alunos memorizarem e papaguearem nas aulas, uma vez que se trata de um documento de referência, um instrumento de trabalho para os professores. Cabe aos professores o trabalho da transposição didáctica dos termos a usar em cada ciclo de ensino, no respeito dos programas em vigor” (Filomena Viegas)

A terminologia linguística que está neste momento em experiência e em revisão tem sido motivo de muitas tomadas de posição públicas, artigos, abaixo-assinados e muita irritação. Certamente, as pessoas, "famosas" ou não, que se pronunciaram sobre a questão não sabem do que estão a falar, tantas e tão ingénuas são as afirmações erradas.” (Maria Helena Mira Mateus)

Com escassíssimas excepções, quando se fala da língua, imperam opiniões categóricas, desinformadas, para não dizer de má-fé e demagógicas.” (Helena Soares)

A «embrulhada específica» de que fala o Dr. V. Graça Moura só será inevitavelmente instaurada se se continuar a pensar que transposição didáctica significa ter uma lista de termos para fazer os alunos decorar com uns exemplos de frases, criadas “ad hoc”. Qualquer professor de Português sabe que não é assim.” (Assunção Caldeira Cabral)

3. Logo se puseram em riste os literatos contra os linguistas, acusando o ensino do português de ser tecnicista em vez de humanista, e atacando-os com adjectivações inclassificáveis:

Entretanto, a senhora Dr.ª Inês Duarte, obcecada pelos países de ponta e pelos milhares de páginas que diz ter lido, não vê a realidade e não se dá conta de que a aprendizagem de português na escola se tem degradado criminosamente de dia para dia nos últimos anos, e mais ainda desde 1996. O que, só por si, é uma boa demonstração de que os programas são um escândalo, estão clamorosamente errados e têm de mudar, em muito que isso lhe pese a ela, por deles ter sido uma espécie de Egéria desastrada ou de guru macambúzio. (...) Um dia, talvez deixe de... odiar a literatura portuguesa nos programas escolares. Até lá, passe muito bem.” (Vasco Graça Moura)

E logo a opinião dos leigos arrasta os habituais tópicos da decadência do ensino, a incompetência dos professores, o estado do país, etc.:

Tão monstruosa quanto parece”; “praga da nossa administração”, “irresponsabilidade generalizada”; “tenebroso sistema instalado que é o ciclo de lucro imparável em que se viciaram as editoras“. (João Morgado Fernandes)

A sanha sobe de tom, acusa-se a ministra de tudo e pergunta-se:

Quem são os responsáveis que, no seu ministério, se vêm enfeudando a estas aberrações, conseguindo fazê-las consagrar na lei, com os resultados desastrosos que todos conhecem? Não lhes acontece nada? Ninguém pensa em pô-los na rua?“ (Vasco Graça Moura)

“Senhora ministra, minha cara amiga, suspenda este processo e repense tudo.” (Eduardo Prado Coelho)

4. Porém, importa esclarecer:

a) uma terminologia não é uma gramática;
b) a gramática que se pratica e ensina nas escolas, pelo menos desde há 20 anos (falo com experiência de professora de Português), já usa a terminologia que a TLEBS sistematiza;
c) a generalidade das gramáticas usadas no ensino toma como referência a conceituada Nova Gramática do Português Contemporâneo de Lindley Cintra e Celso Cunha (1984) - mas com actualizações;
d) por isso, havendo discrepâncias de nomenclatura, era inevitável que esta fosse uniformizada oficialmente (para serviriam os linguistas?).

5. Ora, acontece que:

a) os críticos, todos maiores de 40 anos (que ainda aprenderam a gramática à moda antiga, decorando listas de preposições e conjunções, como se decoravam também os rios de Portugal e de Angola e as conquistas de D. Afonso Henriques), indignam-se com a ideia de obrigar os alunos a decorar palavrões;
b) mas já ninguém decora gramática na escola;
c) a gramática é um auxiliar de língua que se deve saber consultar tal como um dicionário ou como um google;
d) a gramática aprende-se de uma forma funcional e prática, como auxiliar da compreensão do funcionamento da língua, ajuda aliás indispensável para escrever bem;
e) entretanto, todos criticam, mas ninguém foi verificar quais são os programas oficiais do ensino básico e secundário;
f) logo, não sabem do que falam;
g) e falam do que não sabem (vejam-se, por exemplo, os erros de Helena Matos, de Maria Alzira Seixo e de Maria do Carmo Vieira).

6. Algumas achegas:

Nas últimas décadas tem-se usado “nome” e “substantivo” como termos equivalentes. Acontece que também há as expressões nominais e os grupos nominais, formados em volta de um nome. Para evitar confusões lexicais aos alunos, será mais simples e coerente usar a designação “nome” em vez de “substantivo” (uma palavra até um pouco complicada para as crianças). (Na gramática de Cintra & Cunha aparece “substantivo”.)

As frases podem ser simples ou complexas, correspondendo aos chamados períodos. Uma frase complexa articula várias frases simples (que também se chamam “orações”). É por isso mais coerente que tenham designações semelhantes. As frases juntam-se umas às outras de várias formas, por meio de conjunções e outras partículas atómicas. Reconhecê-las é determinante para entender as regras de pontuação, por exemplo.

Não vou explicar os adjectivos, porque não sou especialista de gramática; como professora, quando preciso, consulto a gramática, que para mim é perfeitamente clara, visto que tive 4 anos de linguística da faculdade, além de uma cadeira de estágio em didáctica da língua, tal como todos os professores de Português (exceptuando os do 2º ciclo do EB que sejam formados em História, por exemplo).

Quanto à gramática generativa, que nos anos 80 foi moda ensinar, acabou por ser dispensada; de facto, houve um exagero nos manuais, mas mesmo a gramática de Cintra & Cunha a integra na sua forma mais simples, dividindo a frase em sintagma nominal e sintagma verbal (que na TLEBS já aparecem simplificados como grupo nominal e grupo verbal).

Talvez pouca gente saiba que a gramática generativa é a melhor teoria linguística existente até hoje – genialmente desenvolvida pelo grande linguista Noam Chomsky, mais célebre pelas suas intervenções públicas contra a manipulação dos media - e que descreve e explica os universais de todas as línguas; apenas quando se entra em níveis de complexidade maior, não é a gramática adequada aos problemas práticos, às regras e à compreensão da língua a um nível escolar.

7. Por último, o que pedem, os programas escolares: exercícios de gramática que orientam para uma compreensão da semântica, do estilo e do discurso; o que certamente concorre para desmentir a ideia bizarra de que a língua e a literatura são campos antagónicos.Vejamos, por exemplo, os programas do 3º ciclo do Ensino Básico:

- a organização da estrutura frásica e a pontuação;
- a distinção das classes de palavras; (p.48)

cujos “processos de operacionalização” (i.e. exercícios práticos) são, por exemplo:

- Articular diferentes partes de um texto com palavras ou expressões dadas (advérbios, conjunções e locuções adverbiais e conjuncionais). (p.50)
- verificar experimentalmente a estrutura da frase simples:
- expandir e reduzir frases, distinguindo os elementos fundamentais;
- verificar a mobilidade de alguns elementos da frase.
- Explorar diferenças de valor estético e semântico resultantes da mobilidade de elementos da frase.
- Distinguir e identificar as palavras ou expressões que, numa oração, desempenham funções essenciais e acessórias (predicativo do sujeito, complementos circunstanciais de modo, de causa, de companhia e de fim; vocativo; agente da passiva; atributo; complemento determinativo; predicativo do complemento directo e aposto). (p.51)
- Distinguir as formas de ligação das orações (coordenação e subordinação).
- Verificar a natureza das relações entre diferentes espécies de orações coordenadas (conjuntivas, adversativas, disjuntivas e conclusivas); e subordinadas (condicionais e finais; completivas ou integrantes; consecutivas e concessivas; relativas restritivas com antecedente). (p.52)
- Verificar casos especiais da flexão dos nomes em situações de uso corrente em actividades de produção oral e escrita; (número, género e grau); (p.53)

Nota-se a incoerência do uso dos termos “frase” e “oração” que a TLEBS vem corrigir. Mas nada de terminologias demasiado analíticas. E se sempre os professores souberam simplificar a matéria para a adequar à compreensão dos alunos, decerto não deixarão agora de o fazer. Os programas não se aplicam às cegas. E a compreensão da língua pratica-se em exercícios, não pela memorização estrita.

Nada de “origem deôntica e alvo deôntico das frases imperativas”. Nada do outro mundo.

Para continuar o debate com mais propriedade, sugiro, para TPC, a análise sintáctica da frase de EPC: “Senhora ministra, minha cara amiga, suspenda este processo e repense tudo.” Para os mais atreitos, a classificação morfológica dos adjectivos de VGM. (Podem consultar a gramática.)

4 comentários:

Vigorosa & Poderosa disse...

Excelente síntese, muito bom!

Anónimo disse...

Está muito bom, certamente, mas penso que esquece aquela que eu considero ser a crítica mais pertinente à TLEBS ou seja, se ela estará verdadeiramente pensada para os Ensinos Básico e Secundário, nomeadamente aquilo que deve ser leccionado a cada um desse níveis.
A TLEBS não é um programa disciplinar, é certo, mas talvez fosse boa ideia que a sua generalização fosse pensada em articulação com um reajuste, no mínimo, dos programas e dos manuais que entretanto vão - ou não - sendo feitos sobre areias movediças.

Anónimo disse...

o comentário anterior vem destas paragens: educar.wordpress.com, só que na validação da identidade, correu algo mal.
;)

Leonor Areal disse...

A Terminologia é um documento de referência que uniformiza o vocabulário e as categorias usadas por quem faz os manuais de ensino e as gramáticas; mas não altera os programas escolares, que apenas usam a terminologia mais básica.