Acto da Primavera (1963) de Manoel de Oliveira filma um Auto da Paixão representado numa aldeia de Trás-os-Montes e reconstrói-o cinematograficamente, no cumprimento estrito do texto do evangelho popular, pelo qual se revelam as emoções genuínas dos seus actores, emoções ancestrais cristalizadas no texto dito e revividas na sua qualidade de representação.
O filme é uma síntese indestrinçável entre documentário e ficção, porque se, por um lado, mete-em-cena uma ficção encarnada pelos seus actores e a enquadra com outras cenas construídas, como a da leitura do jornal pelos homens da aldeia (com a notícia da possibilidade de o Homem ir à Lua) ou a dos jovens citadinos que vêm para assistir à festa, por outro, regista documentalmente a afluência de forasteiros e visitantes para assistir ao verdadeiro Auto e, sobretudo, testemunha o significado que a representação bíblica tem para os actores-habitantes da própria aldeia.
Apesar da elaborada découpage feita para a filmagem, o que é documental é o transmitir o sentimento autêntico dos camponeses actores – esse sentimento que em ficção é mais fingido e aqui é mais autêntico – paradoxo extraordinário de que o filme retira toda a sua força. Somos surpreendidos pelo facto de o teatro se tornar mais verdadeiro e sentido do que podíamos esperar – e percebemos que a liturgia desempenha um papel nisso.
A forma como é introduzida a ficção teatral no quotidiano documental – demonstrando também a proximidade entre a vida rural e o universo cultural bíblico – é interessantíssima: a rapariga veste o traje de teatro e nesse acto transforma-se na personagem intemporal que vai representar mas cujos gestos quotidianos são os mesmos: e lá vai ela ao poço, onde lhe aparece Cristo e assim começa o auto – acorrendo todos, actores, aldeia, espectadores e forasteiros – aos seus gritos – que são duplos: os da visão de Jesus e os dos chamamento para a peça de teatro.
A concepção geral é notável e inovadora – a recuperação estética desse “sentimento original” (como é dito no texto prévio) - obtida pela sua contextualização nos tempos modernos, que é feita tanto pelo dispositivo ficcional do jornal lido como pelo dispositivo documental de registar o quotidiano dos aldeãos e a afluência de público para assistir ao verdadeiro Auto. A estranheza dos forasteiros é a nossa também, mas Oliveira consegue, com um passe de ilusionismo, levar-nos até ao outro lado nesta espécie de “viagem ao princípio do mundo”. E conclui a parábola, inesperadamente, ressuscitando imagens de arquivo de guerras actuais.
No Acto da Primavera encontramos o olhar especial e próprio de Oliveira – uma maneira de filmar que demonstra, por um lado, um apreço pela teatralidade estrita - o encanto e a emoção da palavra teatral, a força e convicção que ela transporta no seu artificialismo, e pelo qual se concentram e apuram os sentimentos colectivos partilhados – e, por outro lado, o papel da câmara na mise-en-scène do texto, redramatizado pelas posições da câmara, que encontram uma autonomia expressiva quase independente das palavras ditas.
Hoje na Cinemateca, às 19 horas, com a presença do cineasta.
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