“Borat” mistura de forma inédita diferentes registos, o que tem provocado as reacções e interpretações mais díspares. Uns consideram-no um filme de mau-gosto, uma caricatura insultuosa ou uma extensão do formato televisivo de “apanhados”, outros voltam a sua atenção para o Cazaquistão, outros divertem-se imenso... O que nele mexe connosco realmente é o desrespeito por todas as convenções do bom-gosto.
O que intriga e confunde é ainda a mistura intrincada de registos: ficção, documentário, reportagem e comédia televisiva. O efeito puzzling resulta da ambiguidade que vem da fusão desses regimes audiovisuais. O espectador é obrigado e rever e pôr em causa as suas pressuposições acerca das imagens que vê. Não é um documentário, apesar de se assumir como tal, mas talvez um fake de documentário ou uma espécie de mockumentário.
Borat (o personagem) começa por apresentar a sua aldeia, no ficcionado país dos cazaques, e a família - um quadro que é uma perfeita caricatura daquilo que imaginamos como o grau zero da pobreza e da amoralidade nos países de leste (um tanto tingida do imaginário Kusturica); tudo aqui assumido com a alegria do nonsense e subvertendo as nossas convenções (por exemplo, o beijo na boca da rapariga, que afinal é sua irmã, que afinal é prostituta, ou as piadas acerca dos estropiados, ou o desfile do judeu, ou a escatologia sem limites, etc.).
Depois, Borat, sendo repórter, decide empreender uma viagem à América para fazer uma série de reportagens para a sua televisão. A personagem criada por ele é ficcional, na biografia, na personalidade, no sotaque. Mas as reportagens que ele vai fazer são plenamente assumidas e - explicando que está a fazer um documentário - ele consegue entrevistar pessoas, marcar encontros, ter acesso a programas de televisão, etc. Aí - e depois de todo um processo de aproximação e criação de confiança (que o filme não mostra) para tornar o personagem do repórter credível – Borat, fingindo-se tolo, apresenta atitudes e opiniões socialmente incorrectas e – tirando partido do efeito de surpresa criado em contexto – provoca um confronto cultural em que se torna necessária para o seu interlocutor a explicação dos valores vigentes.
De repente, todas as convenções e subentendidos a que estamos habituados, acções e moralidades que, como ocidentais, partilhamos, se tornam tão evidentes e tão caricatas como o retrato sumário que inicialmente fora feito do Cazaquistão. Apenas, aquele percebemos que é ficcional; este é real – e é a América. Uma sua caricatura, claro, porque o filme só mostra as cenas na parte em que descambam – criado um efeito cómico construído pela montagem. Mas uma caricatura que - nascendo de situações reais e mostrando convicções sinceras – faz um retrato da América no seu esquematismo máximo: o puritanismo, a agressividade, o fanatismo religioso, os tipos sociais: os machões, as feministas, os gays, a burguesia, etc.
Por um lado, há as cenas de comédia pura – a aldeia natal, a galinha que ele transporta na mala, a luta livre entre homens nus, etc. Por outro, há as cenas de apanhados do real, que pintam um retrato – tão hilariante como contundente - da América. Assim, o filme não ofende o Cazaquistão (ou a Roménia, onde foi filmada a aldeia ficcional). O que pode é ofender a imagem da América.
Ou ofender a imagem dos seus participantes, alguns dos quais já formalizaram protestos. É que, se todos participam no filme de livre vontade e conscientes de estarem a ser filmados para uma espécie de documentário, não esperavam ser enganados acerca da identidade do entrevistador. Em consequência, levantam-se questões de ética - por confiança traída.
Depois do programa universal Bigbrother, este é um filme que contribui para a fazer crescer a suspeição que cada vez mais as pessoas têm quando vêem alguém com uma câmara na mão. É a perda da inocência: a consciência acrescida de que as imagens são manipuláveis e a incerteza acerca do seu estatuto de realidade. Talvez, apesar dos danos, um passo em frente na literacia dos media.
Depois do programa universal Bigbrother, este é um filme que contribui para a fazer crescer a suspeição que cada vez mais as pessoas têm quando vêem alguém com uma câmara na mão. É a perda da inocência: a consciência acrescida de que as imagens são manipuláveis e a incerteza acerca do seu estatuto de realidade. Talvez, apesar dos danos, um passo em frente na literacia dos media.
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