11 dezembro 2006

Literacia

A propósito do seminário Educação em Imagens, deixo aqui algumas notas. Os filmes, é sabido, e neste caso os documentários, prestam-se a interpretações completamente diferentes. Podendo as imagens ser lidas, treslidas e verbalizadas de modos diversos, sobrepõem-se dois fenómenos: 1) cada espectador faz uma leitura aplicando a sua experiência e a sua memória; 2) as pessoas nem sempre lêem /ou reconhecem como estão construídas as imagens, nem apontam as dúvidas que se levantam na sua referência ao real.

Afinal, é assim que o cinema funciona – procura emocionar o espectador, fazê-lo reagir - muitas vezes “impondo” um ponto de vista. Por exemplo: o filme Ser e Ter, de Nicholas Philibert, consegue criar um universo de harmonia e suscitar uma nostalgia da escola ideal; ao contrário, A Escola, de Leonardo di Costanzo, procura dar uma ideia de caos na escola e fazer-nos sentir uma enorme angústia para que não há saída.

No entanto, se quisermos olhar para as imagens de uma forma mais objectiva - se quisermos falar da realidade que as precedeu - teremos que perceber como elas foram feitas, ou seja, teremos que analisar:
- o que as imagens provam e o que não provam;
- o grau de subjectividade que contêm.

Outros documentários, cuja construção é menos dirigida às emoções e apela mais à reflexão, são, por exemplo, os filmes de Frederick Wiseman, High School I e II, que nos mostram a escola como instituição modeladora de uma ordem social, retrato cru de uma ideologia, mas também imagem de uma certa utopia social – a do estado moderno e de como ele se reproduz. Embora tenha um olhar crítico, Wiseman deixa-nos lugar para interpretar e analisar a complexidade inerente ao real. Outro exemplo é a série documental – 6 episódios – de Mariana Otero, La Loi au Collège, que nos dá elementos para pensarmos na escola como um sistema instável, mas regulado através de uma lei interna. Aqui, porque somos mais livres como espectadores, torna-se ainda mais difícil percebermos até que ponto, na leitura de um filme, somos conduzidos pelo realizador.

Outro exemplo: no meu filme Doutor Estranho Amor (que segue umas aulas de educação sexual), tentei contrapor duas forças – a da organização e ideologia escolar e a da desordem /ou resistência dos alunos. Não as vi como uma luta, mas como um jogo de equilíbrio de forças; embora isso me parecesse claro, o filme teve leituras completamente díspares – e sobretudo emotivas: para uns eram os alunos que eram ineducáveis, para outros, apesar da dificuldade, os professores e monitores conseguiram recuperar os alunos, para outros ainda, os professores são péssimos, os alunos desinteressados e a escola não serve para nada.

É por isso que, embora os documentários sejam testemunhos de uma realidade actual - e tanto mais interessantes quando a mostram em conflito interno, i.e. em mutação - não é fácil serem legíveis, enquanto reflexo dessa realidade, se não soubermos fazer a desconstrução das imagens que vemos. Ou seja, não podemos falar da realidade nos filmes se não soubermos distinguir a forma como lemos as imagens e a forma como elas foram construídas.

O que – invertendo a equação e falando do lugar das imagens na educação – é aquilo que se faz, junto das crianças e dos jovens, na chamada Educação para os Media, também chamada Literacia dos Media - abrangendo já as competências dos adultos que, embora munidos de outros instrumentos de análise, poderão conhecer dificuldades idênticas. Nos estudos fílmicos, por exemplos, ainda se discute se é possível chegar a um nível de análise em que possamos distinguir se uma cena filmada é documental ou ficcional (se foi espontânea ou se foi ensaiada/encenada); ou seja, põe-se a questão de se poder aferir o estatuto de realidade de uma representação através apenas da própria imagem. Há quem diga que é difícil fazer essa aferição. Eu acho que é possível...

Isto para concluir que, quando falamos daquilo que os filmes mostram, temos que saber separar:
- o que a imagem mostra;
- o que o realizador quis que se visse;
- o que nós vemos subjectivamente, aquilo que interpretamos.

E para chegar a esse nível de compreensão é importante passar pela experiência de manipular e usar os media para expressão própria, processo que constitui a definição de literacia dos media como “a capacidade de aceder, analisar e avaliar o poder das imagens, sons e mensagens (...) e de comunicar de forma pessoal através dos media existentes...” :

«Media Literacy may be defined as the ability to access, analyse and evaluate the power of images, sounds and messages which we are now being confronted with on a daily basis and are an important part of our contemporary culture, as well as to communicate competently in media available on a personal basis. Media literacy relates to all media, including television and film, radio and recorded music, print media, the Internet and other new digital communication technologies.»

1 comentário:

Paulo Raposo disse...

E foi bom teres por lá passado...as conversas e as ideias futuras agendemo-las para próximas revisitações.
Ah...e obrigado pelo destaque.