22 dezembro 2006

Genealogia imperfeita das artes do século XX


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A designação «artes multimedia» serve-nos aqui para referir, de um modo geral, as expressões artísticas que integram na sua realização diferentes media - ou seja, meios de comunicação e expressão, entendidos como canal ou como código do processo de comunicação (vide esquema de comunicação). De um modo geral, estes media são derivados das tecnologias que o século XX viu crescer, mas tendo como antepassado respeitável a imprensa. Nas 'artes multimedia' integramos assim as expressões artísticas que utilizam, ou que reflectem, aparatos tecnológicos modernos, enquanto canais: fotografia, cinema, audio, video, mecânica, informática, etc., ou meios de comunicação social (imprensa, televisão, rádio, publicidade, etc.); e integramos também, enquanto linguagens: o espectáculo teatral e musical, a performance, a instalação, o cinema e o video, o 'audiovisual', as artes plásticas, o design, a literatura, a cibernética, e tudo o mais, na medida em que se concretizem sob formas mistas e multiformes, mais correntemente designadas de 'multimedia', se tendem para integração ou fusão de vários media, ou ‘intermedia’, se associam linguagens e técnicas diferentes.

Em 1800 e tal, Wagner introduziu a expressão «arte total» para reinventar a ideia de uma obra de arte que se apresenta una na sua totalidade, pela conjugação de diferentes linguagens e técnicas: a poesia, a música, o teatro, a cenografia, a luz, etc., tudo isto submetido a uma visão do espectáculo operático como uma experiência quase religiosa e capaz de subjugar, estética, emocional e ideologicamente, o espectador - tal como o fizera o teatro grego antigo, e como também o cinema de massas depois o conseguiu. A realidade virtual também procura lá chegar, mas é só, ainda, uma promessa com vários arremedos.

Deste ramo do teatro musical cresce toda a tradição da ópera e do espectáculo musical, na qual os Ballets Russes (1917-29) se destacam como momento de revolução modernista. Outro tronco, por excelência ‘multimedia’ e integrador de linguagens, é o do teatro, tronco de origem antiquíssima, cuja linguagem e técnicas têm história própria, que não caberia neste esboço de genealogia das artes solitárias que procuram casamento.

Já os futuristas e dadaistas, usaram todos os meios possíveis para inventar formas de expressão completamente novas: a colagem, a 'tipografia', a fotografia, o ready-made, a performance, a poesia sonora, a música-ruído, e outros processos indeterminados de criar obras. Toda a arte moderna tem raízes, em maior ou menor grau, neles.

O ramo da performance começa com os avós italianos da família Marinetti (1911) e com os avós germano-suíços da família de Hugo Ball (1916). As suas performances têm ainda forma panfletária, num caso, e forma de cabaret absurdo, no outro. São sincréticas com a poesia, com as artes plásticas e com o teatro. Poucos anos depois (1919), Oskar Schlemmer torna-se o primeiro professor de performance e cria, na Bauhaus Stage, formas de teatro muitíssimo elaboradas a nível plástico, sonoro e tecnológico, que cabem na designação ‘teatro total’ de Moholy-Nagy.
Paralelamente, o primo Diaghilev, com seus amigos, cria os Ballets Russes, reunindo e integrando formas inovadoras de música, cenografia e teatro. (Omitindo, sem ofensa, os outros primos 'futuristas' russos.) Almada, em Portugal, assiste aos ballets russes (1917 e 1919), já depois de ele próprio ter nascido para o mundo como multi-artista e tudo.

No final dos anos 40 e durante os 50 até aos 60, vários galhos crescem do ramo da artes performativas: os letristas, fluxus e situacionistas em Paris, cruzando - na designação de 'intermedia' - todas as linguagens para lhes explorar todas as possibilidades; e os tios americanos: John Cage unindo a música às artes da dança (Cunhingham) e do acaso; ou Allan Kaprow, jogando com o imprevisto em instalações-happening com a participação, mais ou menos voluntária, do público. De Fluxus despontam Wolf Vostell ou Nam June Paik, cujas instalações crescem como cogumelos da sociedade do consumo e das tecnologias; e as acções revolucionários e políticas de Beuys, apontadas à consciência. A partir daí, no reino da performance, florescem tantas experiências, até aos nossos dias, que é difícil colhê-las e escolhê-las. No galho mais main stream deste ramo, salienta-se (pela propaganda) Robert Wilson, com o seu 'teatro de imagens'. Kurt Schwitters, irmão dissidente da família dada, inventa Merz e faz crescer todos os seus rebentos, desde a poesia-música à construção-instalação, sem esquecer a reflexão. Sujeito a várias podas (de Hitler e outras), o seu galho cresce com maior vigor e prolonga a vida do tronco Dada por muitos anos. Deixa uma grande herança, mas poucos herdeiros.

No ramo da fotografia, Christian. Schad, da família dada, inventa em 1918 a técnica de impressão fotográfica designada 'schadografia', que consiste em impressionar a película com a silhueta de objectos colocados sobre ela. Man Ray, a partir de 1922 retoma esta técnica, agora chamada de 'rayografia'. Enquanto a fotografia como expressão artística se desenvolve autonomamente, as virtualidades mediúnicas e contextuais da representação fotográfica só nos anos 60 é que desabrocham, com a exploração plástica e espacial deste suporte, em conjugação com outras linguagens: política, literária, pictórica ou conceptual. Daí para a frente, a fotografia reflecte sobre si sempre, e em si encontra o mundo e no mundo encontra o espelho, e no espelho vê-se a si, em perpétua viagem interior. É paradigma de todos os metadiscursos, parente próxima de todos os ecrãs e lentes com que nos observamos.

No ramo do cinema, os futuristas são progenitores e antevêem a força de sugestão que este meio terá futuramente. Depois, os sobrinhos surrealistas (Dali e Buñuel, claro) encontram nele campo para fazer brotar do subsolo o indizível, mas visível. Já nos anos 60, Maurice Kagel (do ramo dos músicos teatrais, dito 'teatro musical', cunhado da música experimental e/ou electrónica), como cineasta experimental, desenvolve, numa linguagem aparentada do surrealismo, acontecimentos in cinema que envolvem tecnologias paradoxais e ambientes sonoros indescritíveis. Nos anos 60 e 70, o filme, e em seguida o vídeo, começa a integrar as performances, as instalações e os objectos plásticos, reflectindo continuadamente sobre as suas virtualidades como medium, como agente e como testemunha. Hoje, a imagem fílmica continua procurando-se em si, com grande perturbação.

O ramo musical da família multimedia , com lianas lançadas sobre os ramos da poesia (Schwitters), da performance (Cage) e do teatro (Kagel), preservou durante o século XX uma certa autonomia, não se expandindo tanto sobre as outras artes, como as outras artes se expandiram sobre ela, para ela e à custa dela. Mas o seu crescimento, a nível puramente musical, desenvolveu-se, a partir dos anos 60, a par da tecnologia e da electrónica, aprofundando a sua pesquisa até às raízes do objecto sonoro. Descendendo de intonarumore (noise music), invenção futurista de Russolo (1913), encontramos a integração de sons e ruídos na partitura e na performance musical, e o desenvolvimento de organologias experimentais e de paisagens sonoras.

No ramo da literatura, descendem de dada os letristas de Paris (apontados por Schwitters como imitadores) explorando as possibilidades fonéticas da intervenção poética, e depois os poetas concretos, visuais e experimentais dos anos 60 e seguintes (família com muitos primos portugueses e brasileiros), que desenvolvem múltiplas reflexão sobre os signos, linguísticos ou outros, tomados formal e semanticamente, solitários ou entrançados, numa aproximação declarada às artes plásticas. Os poetas concretos, agarrando na poesia com as mãos, reconhecem como seus antepassados os cultistas e conceptistas barrocos que se entretinham a trabalhar a filigrana das palavras, em delicados enigmas e jogos labirínticos. Desta raiz formalista deriva igualmente o grupo OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potencielle), que, também nos anos 60, inventou formas combinatórias de criação literária, usando como modelo operativo a cibernética e a matemática para desenvolver estruturas narrativas e poéticas. Algumas destas obras-primas são de Italo Calvino, Georges Perec e Raymond Queneaux.

O tronco da cibernética desenvolveu-se tão espantosamente que hoje sustenta quase todos os media e actividades sociais. Grande parte das funcionalidades dos sistemas informáticos de hoje (chamados multimedia) são desenvolvimentos de tecnologias, técnicas e linguagens de outrora, mas não todas... E das suas consequências a nível da comunicação e das artes, ainda é difícil falar, porque está acontecendo. Daqui deriva o galho do hipertexto, maravilhosa criação in vitro, que permite reproduzir estruturas mentais virtuais, agora tornadas reais. Aqui despontam os rebentos de uma literatura hipertextual, ainda pouco definidos. Por outro lado, a possibilidade de trabalhar digitalmente qualquer tipo de imagem, faz germinar, dos ramos da fotografia e da pintura, uma nova ‘arte digital’, que altera por completo os pressupostos de realidade, origem e autenticidade anteriormente subjacentes às imagens.

No campo da teoria dos media e da comunicação, Mc Luhan ou Moles lavravam as suas teorias, enquanto, pendurados nos galhos desta árvore, os artistas plásticos exercitavam o seu pensamento, visionários de que realmente o medium é a mensagem (e a massagem) e conscientes de que os media, enquanto media, transformaram os conteúdos da comunicação e geraram a sociedade do espectáculo e a aldeia global. Por outro lado, nos novos media e nas novas tecnologias, os artistas encontraram outras possibilidades plásticas e outras formas de realidade, que não cessam de estimular a imaginação.

Leonor Areal, Março 2001

2 comentários:

Leonor Areal disse...

A primeira imperfeição é o lugar vazio do teatro...

Leonor Areal disse...

Enfim, a dança e a performance também estão numa estrada sem saída para o espaço de interligação com as outras artes; mas fiz este esquema já há 5 anos e não o alterei porque o software que deixava fazer esta brincadeira caducou.