15 dezembro 2006

Não, mas



Realizou-se ontem, no espaço da Associação Bacalhoeiros (em parceria com a associação Apordoc), a projecção do documentário ”Excursão” de Leonor Noivo que fora excluído de exibição no último Doclisboa “após a direcção do Festival ter recebido uma carta da Empresa retratada no filme a pedir a suspensão do mesmo. O Doclisboa decidiu retirar o filme por não existir uma autorização escrita pela direcção dessa Empresa e porque, caso o filme fosse exibido, a Apordoc, a Culturgest e o Doclisboa correriam graves riscos de serem alvo de um processo judicial desencadeado pela Empresa em causa.”

Na mesma altura fora lido ainda o comunicado da realizadora que assumia, ela própria, os riscos dessa projecção, justificando: “tal empresa nunca é identificada no filme e seus os direitos e legítimos nunca são postos em causa”; “os documentários de criação são um modo de expressão artística”; e explicando ainda os motivos alegados pela empresa, que “só autorizaria a exibição do filme caso eu voltasse a montá-lo e suprimisse as cenas relativas ao seu processo de vendas e apresentação de produtos, pois a Empresa entende que o seu segredo do negócio não pode ser revelado”, ao que a realizadora contrapunha que “o que está filmado não é mais do que aquilo que qualquer pessoa pode ver ao viajar nessas excursões”.

Agora que o filme foi visto por 50 ou 60 pessoas, percebeu-se que não há nele aparentemente motivos para tantos receios, já que a questão das vendas não é central no filme (embora seja imprescindível), nem é tratada sob a forma de denúncia, nem sequer revela quaisquer actos comerciais menos legítimos. Na discussão que se seguiu, percebeu-se que houve até, da parte da realizadora, um excesso de zelo em tentar obter autorizações – antes e depois da filmagem feita – junto da tal empresa de turismo – o que não conseguiu por ausência de resposta, ao longo de meses, e inacessibilidade da administração. De tudo isto o festival esteve a par, mantendo a sua opção de selecção do filme. Recuou apenas quando, nas vésperas da sua projecção, recebeu a intimidação.
A exposição do caso, pela realizadora e seu advogado, permitiu esclarecer todos estes passos e ainda desfazer uma série de calúnias na forma de boato (que correram através de emails) que pareciam acusar a realizadora de falta de ética por não ter autorizações escritas.

Passo a dar a minha visão dos factos:
1) o que a empresa fez junto do festival foi uma ameaça - que resultou imediatamente (é para isso que servem as ameaças);
2) o festival e a Culturgest, como se depreende do comunicado lacónico, tiveram receio de vir a ter problemas e escândalos; realmente não se pode criticar ninguém por ter medo; mas também não se pode admirar a cobardia; embora haja quem lhe chame prudência;
3) a empresa, se realmente os seus interesses fossem lesados, poderia accionar um caso judicial; mas precisaria de argumentos legais; ora, o “segredo de negócio” apenas vincula os empregados de uma determinada empresa, não é aplicável a uma filmagem de terceiros em espaços abertos ao público;
4) por outro lado, a autorização dos participantes estava dada, à excepção do caso da dona de um restaurante que não autorizou a filmagem (e queria ficar com a cassete!) – cena que não aparece na montagem;
5) o “direito de imagem”, previsto no artigo 79º do Código Civil, que protege o uso da imagem individual por outrém, é um direito pessoal - que a realizadora obteve directamente junto dos participantes;
6) por outro lado, o código civil prevê que “não é necessário consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem (...) finalidades (...) culturais”, em que se pode inserir a finalidade deste filme;
7) “ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos ou na de factos (...) que hajam decorrido publicamente”; o que também se aplica a este documentário;
8) porém, “o retrato não pode ser reproduzido, exposto ou lançado no comércio, se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação (...) da pessoa retratada”;
9) ainda que fosse possível transpor este direito de imagem pessoal para uma espécie de direito de imagem corporativo - que não sei se existe – a empresa só poderia queixar-se de ver prejudicada a sua reputação se conseguisse provar isso efectivamente – o que, visto o filme, seria dificilmente defensável;
10) por outro lado, a insistência da realizadora em obter todas as autorizações terá assustado a empresa, que não tinha dado importância ao caso, e acabou por virar o feitiço contra o feiticeiro;
11) qualquer realizador de documentários – com ou sem autorizações escritas – corre sempre riscos – os de a realidade se virar contra ele; foi o que aqui aconteceu (como já aconteceu em muitos outros casos);
12) mas o risco é só do realizador (e do produtor) – e só eles acarretarão as suas consequências (judicialmente, claro está);
13) a maior parte dos festivais explicita no seu regulamento (não é o caso do Doclisboa) que essa responsabilidade cabe exclusivamente ao realizador/produtor, ficando assim livre de qualquer eventual processo judicial;
14) note-se ainda que um festival, ou a exibição pontual de um filme, não pertence ao circuito comercial de exibição, não é considerada uma exibição comercial;
15) poderemos ainda distingir A) um direito de filmar (que assiste a qualquer outro excursionista filmando a viagem) e B) um direito de divulgar (tornar público) – sendo este último mais limitado, como defende José Carlos Abrantes;
16) mas isso significa pôr em causa a liberdade e a autonomia artística do autor e a sua responsabilidade civil, que só ele deve delimitar e assumir; ninguém o pode fazer em nome dele, ou em nome de regras de bom senso, não escritas nem consignadas;
17) sendo assim, levanta-se a questão ética; a ética é uma questão de convicção e consciência do indivíduo na relação com os outros que filma;
18) e deve distinguir-se de qualquer juízo moral – o que, de modo infeliz, foi o tom que dominou a troca de emails que atacavam tanto a realizadora como a Apordoc;
19) a moral são regras de conduta social dominantes, impostas com ou sem consenso; quando queremos que os outros tenham a mesma moral que nós, estamos a ser moralistas;
20) ora, não existe uma norma ética em documentário; ao contrário do que muitos crêem, não é necessária uma autorização escrita e prévia, o consentimento tácito também é válido;
21) e nem seria possível definir um código deontológico para o documentário (à semelhança daquele que têm os jornalistas); o próprio campo do documentário é indefinido e as suas práticas impossíveis de delimitar;
22) fazer filmes não é uma actividade profissional regulada, é um campo de expressão individual protegido acima de tudo pelo “direito à liberdade de expressão”, que inclui um direito artístico, digamos assim, e um “direito de informação”, consagrado na Constituição;
23) também não me parece aceitável que um documentarista possa ficar refém da má vontade – e da falta de ética, frequentemente – daqueles que filma; ele deve saber assumir os seus riscos, responsabilidades e consequências;
24) ao contrário, a empresa cujo nome é sempre omisso – o que eu não compreendo - continua protegida de todas as consequências deste processo; uma empresa não deve ser uma fortaleza inexpugnável, com regras internas absolutas;
25) é importante salientar que deste processo sai prejudicada sobremaneira a realizadora;
26) serão as consequências do seu risco, pois sim; mas a sua responsabilidade foi coarctada quando o festival decidiu em vez dela;
27) em menor grau, sai prejudicado o festival, na frouxidão dos seus princípios; dando prevalência a um (suposto) direito comercial sobre o direito à criação cinematográfica.
28) não é evidente, para mim, que seja este um caso de censura, como acusou a Joana Amaral Dias, apesar de que, “como outrém salientou, «hoje em dia a censura não tem um rosto definido, único e englobante, tem vários rostos obscurecidos e dissimulados»”;
29) em conclusão - e como foi proposto no debate de ontem - seria do maior interesse organizar uma espécie de encontro em que se falaria, na primeira pessoa, de casos concretos de filmes e suas experiências éticas;
30) assim se poderá discutir a complexidade das situações e a relação dos documentaristas face às pessoas que são a matéria do seu trabalho.

Este esquematismo é a única maneira que encontrei de clarificar a tempestade cerebral das últimas semanas. Evito propositadamente fazer críticas, porque não quero ser moralista. Mas quem critica deve aceitar ser criticado.

Mais eloquente é o André Dias, cuja formulação do problema, prévia ao visionamento do filme, me parece ainda válida.

Para terminar, deixo a máxima inscrita junto ao Auditório de Serpa: “Ética é estar à altura daquilo que nos acontece” (Gilles Deleuze).

P.S. Acerca dos conflitos entre "direito de imagem" e "direito à informação" ver um debate recente sobre fotografia:

3 comentários:

Nuno Pires disse...

Merci pour ce compte-rendu et pour ton point de vue. Je regrette de n'avoir pas pu y aller...

Anónimo disse...

Não me parece que a cobardia, o medo ou a prudência façam parte desta história. Na minha opinião, a principal função de um festival é dar legitimidade aos filmes que selecciona, e tem que o saber fazer sob pena de perca dos vínculos que a unem à classe que representa. Não é apenas uma questão ética que estamos aqui a tratar, a direcção do Doc Lisboa não é nem polícia, nem fiscal, nem entidade reguladora, e são as competências dessa direcção que devem ser discutidas futuramente para que casos destes não se repitam.

Não me vou alongar. No teu post pareces tratar o caso como passado, evitas fazer criticas, uma atitude muito comum no cantinho Lusitano, mas, até novo esclarecimento por parte da direcção do festival, não apenas o filme, o nome ou a atitude ética da realizadora que foram postos em causa é o trabalho de todos.

Leonor Areal disse...

Concordo em tudo.