O documentário Sereias de Dina Campos Lopes acompanha a viagem do barco Borndiep que, em Setembro de 2004, tentou chegar a Portugal para defender a legalização do aborto seguro. As activistas da organização Women on Waves preparam a sua viagem sem publicitar (na internet) dados precisos sobre datas ou destino final, mas isso não evita que o barco seja detido antes de entrar em águas portuguesas. Foram gravadas as conversas telefónicas com as autoridades portuguesas e, perante a negativa, as sereias ficam a banhos no alto mar, sempre vigiadas a distância por um barco militar que se aproxima apenas para mandar piropos quando elas vão ao banho em biquini.
Outras activistas vieram não por mar mas por ar e assim podemos perceber que há movimentações políticas em terra – uma pequena manifestação, uma conferência de imprensa - que procuram pressionar as autoridades. Há ainda uma delegação de deputados ao barco, que, na pessoa de Francisco Louçã, pede, por telefone, uma explicação para a não-autorização de aportar. Perante uma resposta definitiva - não têm autorização porque não têm autorização - e um comentário brejeiro dirigido à deputada Odete Santos, a delegação nada mais pode fazer. No mar, as sereias limitam-se a ouvir na televisão as declarações inflamadas do ministro da defesa Paulo Portas, cuja gestualidade expressiva suplanta as barreiras linguísticas e que, apesar do tom trágico que no contexto parecia ter, pôs a plateia da Culturgest a rir às gargalhadas. O PM Santana Lopes também aparece a dizer que Portugal é um país de liberdade.
Em contraponto, as sereias filmam-se a si próprias, fazendo depoimentos auto-reflexivos, numa incompreensão do que passa em terra. O que ressalta deste confronto é a sua visão de Portugal como uma república das bananas – o que não deixa de ser verdade – onde as mulheres não têm direito à escolha e à autodeterminação. Na conferência final, uma activista estrangeira pinta um quadro pavoroso em que as mulheres sem meios monetários suficientes praticam abortos com agulhas de tricô. Na realidade, hoje praticam-se já outros métodos – embora clandestinos e com sequelas equivalentes àquele outro.
A vinda do “barco do aborto” teve não só um enorme efeito mediático – a que a realizadora intencionalmente fugiu – como permitiu que finalmente se falasse e se escrevesse sobre os métodos que se usam para provocar quimicamente o aborto - assunto nunca antes abordado publicamente. Na prática, passou-se em terra muito mais do que as activistas no mar puderam presenciar.
O filme, por opção, omite os efeitos desta acção, concentrando-se nos seus protagonistas e no seu sentimento de impotência. O tom é quase confessional e centrado em perspectivas individuais. Inicialmente imbuídas de um espírito de “missão”, o de esclarecer as mulheres portuguesas, mas sem quererem ser “arrogantes”. No final, admitindo o falhanço dos seus objectivos e procurando aceitar que não podem impor a sua perspectiva às mulheres portuguesas porque Portugal não está preparado para isso e está no seu direito de se governar à sua maneira.
Falam disto como quem fala de um país árabe onde as mulheres escondidas nas suas burkas não queiram ser libertadas. O paternalismo e o desconhecimento são evidentes. Cometem o erro involuntário de supor que um governo autocrático representa uma vontade popular generalizada. O filme, sancionando esta visão, não procura conhecer o outro lado do espelho: a realidade do problema que a todos preocupa, ou mesmo o impacto que o evento teve na opinião pública, afinal seu principal mérito e, aliás, contributo para o desgaste rápido do governo ultradireitista que tínhamos.
Usando sobretudo material vídeo amador, este documentário aparece como o filme possível feito a partir dos registos recolhidos ad hoc. E sente-se uma falta de coesão que uma preparação prévia e uma abordagem intencional dos factos que lhe teria dado.
(visto ontem no DocLisboa)
3 comentários:
Sabendo agora que a realizadora acompanhou o processo durante meses - http://pirataquesefoi.blogspot.com/2005/10/sereias.html - é difícil compreender por que optou por uma visão tão distanciada.
Gostava de saber quando posso ver o documentário?
Se for ao doclisboa esta semana, poderá vê-lo em cassete na sala de visionamentos, ou mais tarde na Apordoc.
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