14 outubro 2005

Ciganos


Único filme realizado pelo director de fotografia João Abel Aboim, Ciganos (1979) é um documentário feito ainda no ímpeto do pós-revolução. Como é típico de outros documentários dessa época, não está preocupado tanto com aspectos de estilística, metodologia ou epistemologia, como está com revelar e tratar a realidade sua contemporânea.

O filme começa com imagens de ciganos num acampamento, dançando e cantando, e vários grandes planos que declaram uma aproximação à escala do indivíduo. Depois saltamos para a cidade, onde vivem em bairros de lata (na Ajuda, no Areeiro) os que fugiram do campo e do nomadismo. Ao todo entrevista 3 ou 4 ciganos, que se apresentam formalmente perante a câmara, dizendo nome, profissão, número de filhos, origem geográfica, etc. Um historiador explica a origem dos ciganos e a sua migração do Egipto até à Península Ibérica no século xiii, onde passaram a ser chamados “egitanos”, “gitanos”, “ciganos”. Apesar da sua integração geográfica e linguística ter séculos, vivem marginalizados e são olhados com a mesma estranheza e desconfiança que hoje é votada, por exemplo, aos recentes imigrantes orientais.

As cenas do seu quotidiano num bairro da lata são acompanhadas da música que antes animava o baile espontâneo. A contradição em termos – a alegria da música e a pobreza das condições de vida – evita tanto o sentimentalismo como o miserabilismo. Não há indulgência neste olhar, há uma realidade exposta nas suas facetas diferentes.

O processo de expor contradições alarga-se através de inquéritos feitos aos habitantes não ciganos. A vox populi diz de tudo: que eles são ladrões, que eles são pessoas como as outras, que eles são carinhosos para as crianças, que eles são maus para os burros. Uma professora primária, confessando que está no início do ano lectivo e por isso ainda não conhece bem os alunos ciganos que tem pela primeira vez, afirma e repete, no entanto, que eles são traiçoeiros. Outra voz off (não sabemos bem de quem) diz que as crianças ciganas não sabem brincar e desistem logo da escola, mas um cigano diz que os filhos hão-de ir à escola, como ele também foi até à quarta classe. Outra voz diz que os ciganos não se integram no mercado de trabalho, pois nasceram para o negócio. Mas um deles – muito bem falante e com estudos até ao ciclo preparatório - trabalha numa fábrica, pois o negócio não corria sempre bem e ele tem a “presunção” de dar o melhor aos seus filhos. Outra voz diz que os ciganos têm “amor pela liberdade”, mas um chefe cigano diz que antes do 25 de Abril viviam no “tempo da escravidade” e compara a brutalidade da GNR para com os ciganos a Hitler.

É assim um filme que regista opiniões diversas que, na época, definiam ideias colectivas sobre o povo cigano. É um filme sobre representações sociais (auto-representações e alter-representações) num tempo e espaço dado. Por isso não concordo com Manuel Cintra Ferreira quando diz (na folha de sala da Cinemateca, onde o filme passou anteontem) que este filme “o que hoje nos traz é apenas um sentimento de “nostalgia” por um tempo em que as coisas eram (pareciam) mais simples”. Não me parece que fossem. Também não vejo que seja “principalmente um retrato do que filma no seu tempo (...), o que o torna irremediável ultrapassado hoje em dia”. Isso é que lhe dá um valor intemporal de testemunho de um presente já passado, que hoje podemos discutir com o benefício da distância histórica.

É um documentário em que o sujeito do discurso (o autor do filme) não se esconde, ele está assumidamente presente e interage com os seus personagens fílmicos. Ele faz perguntas, interpelando as pessoas de acordo com as normas sociais de então, tratando-as por tu, por você ou por senhor. Nesse aspecto, aparenta a técnica da entrevista de reportagem, que não é. Pois o autor afirma-se pela sua visão desse mundo, expressa, por exemplo, na forma como introduz a música ou como associa os relatos em off às imagens.

O documentarista não se esconde nem se omite, ao contrário do que é frequente em muitos filmes actuais, que parecem fingir que não está ninguém a filmar e transportam o seu olhar para aspectos mais subtis ou íntimos da realidade. Naquele o olhar do enunciador está sempre presente, na decisão de atribuir sentido aos actos filmados. Nessa época, a voz off ainda não tinha sido anatemizada, e representa aqui a voz da consciência - consciente de si e do seu papel político, social, cultural. Há verdade neste cinema. A suficiente para o podermos incluir no pouco conhecido movimento português do “cinema-verdade”.

P.S. Sobre a integração de um menino cigano na escola encontrei este recente testemunho: http://aculturaeparasecomer.blogs.sapo.pt/arquivo/326003.html

5 comentários:

Anónimo disse...

Olá gostaria de saber se existe algum link onde eu possa fazer o download deste filme.
Obrigado

Leonardo Rocchetti
leonardorocchetti@gmail.com

Leonor Areal disse...

Não crei que haja sequer em vhs ou dvd. Vi o filme numa sessão da Cinemateca. Talvez possa ter alguma resposta contactando a Cinemateca ou o autor.

Mari Page disse...

Como eu encontro esse filme?

Leonor Areal disse...

O melhor será contactar o realizador: http://www.cineguiaportugal.com/pt/entities_category/contact_detail/6169

Fernando Moittal disse...

Muito interessante. Obrigado.