Ainda em Serralves, está instalado um vídeo de Filipa César que (à segunda visita e com tempo dedicado) vi de uma ponta à outra, como quem faz o trajecto circular de 61 minutos da linha Ringbahn que dá nome ao filme. Pode dizer-se que Filipa César fez um percurso inverso do de Pedro Costa. Cruzam ambos zonas próximas do território das artes contemporâneas, mas em movimento contrário.
O trabalho de Filipa César (vinda da escola de belas-artes) provém de um tronco das artes plásticas dominante nos últimos anos e que, simplificando, consistiu em largar os pincéis e pegar no vídeo. Essa tradição, que já vem dos conceptuais dos anos 60 e 70, atravessa os anos 80 discretamente e explode nos anos 90 e 2000 numa pesquisa múltipla da expressão videoplástica e por uma interrogação permanente dos seus códigos e experiências, através de uma apreensão fenomenológica do medium-video e das suas realidades difusas e ideologias confusas.
O actual trabalho de Filipa César situa-se num ponto de convergência entre esta tradição e a concepção genética de cinema que se organiza numa linha narrativa e temporal. Este filme está quase mais próximo daquilo que chamamos documentário do que daquilo que chamamos video-instalação. Vê-se como um todo, como uma tese, um filme-ensaio. Mas vê-se igualmente por um momento (2 minutos, 5, 10, 15) como um olhar peculiar sobre a vida, ou como uma metodologia de reflexão. O que há aqui de fortemente documental não é tanto a estrutura (que é totalmente aberta), mas o facto de se relacionar com a vida.
Sobre as imagens recolhidas na rua e em espaços públicos de pessoas em actividades diversas, ouvem-se duas vozes em diálogo incessante que reflectem sobre os gestos e a comunicação humana a um nível de pormenor intersticial. É uma conversa interessante, viva, improvisada aparentemente mas ininterrupta. As imagens que passam suportam o texto e criam relações de sentido que (ao contrário do que vem dito no folheto da exposição) não parecem casuais mas motivadas e intencionais. Assim, há uma adequação imagem-texto que é provocada e manipulada pela mesma técnica que se usa em documentário e especialmente em televisão – sobrepor um discurso às imagens e dar-lhes um sentido suplementar que elas só por si não teriam. Mas aqui, acontece ainda outra coisa: sendo o discurso por vezes abstracto, derivativo, quase filosófico, são as imagens que vêm elucidar e enriquecer os conceitos. Há um movimento-contrário de confluência entre imagem e palavra que é uma experiência conceptual muito produtiva.
Mesmo se (segundo o folheto da exposição) esses diálogos se baseiam num chamado síndroma de Asperger (de pessoas que apresentam dificuldades em comunicar socialmente), o filme não é sobre esse problema clínico, que acho irrelevante senão como curiosidade ou mero pretexto. Também não nos é explicado como foi construído o diálogo, quem o improvisou ou escreveu. Na ausência de referenciais e de dados sobre as circunstâncias do real, temos que entender o filme tal como se nos apresenta: um ensaio sobre os códigos inexpressos da comunicação humana. Uma montagem de imagens e de textos concatenados. Um filme onde estão ausentes as personagens, só existindo figurantes e duas vozes abstractas. Um olhar "crítico" sobre a vida, uma experiência fílmica particular a cada espectador.
Pequeno excerto do diálogo:
B: Significa isso que tudo funciona com movimentos contrários.
M: Ou com um pequeno recuo. Quando te bato, se agora por exemplo te batesse, primeiro levantava um bocadinho a mão e depois batia. E mesmo se o verdadeiro recuo não é perceptível, se é dificilmente observável de fora, poder-se-ia ainda assim observar a ideia ou a inspiração para bater enquanto movimento contrário, porque eu inspiro uma vez para depois expirar e bater.
B: E isso só funciona para actos físicos ou também para processos humanos?
P.S. Como a recepção de filme não é independente das suas condições materiais de projecção, agradeço à autora ter providenciado uns magníficos pufes, onde - após 300 quilómetros de estrada e alguns sintomas de Aspegic - nos podemos esticar a processar descansadamente as aceleradas ideias do filme. Neste espaço, há a possibilidade de uma receptividade diferente daquela que uma sala vazia de chão duro nos oferece, ou daquela que temos numa sala de cinema com suas cadeiras alinhadas.
Sem comentários:
Enviar um comentário