02 janeiro 2006

Re: Cruzamentos genéticos


As oitos horas, teriam sido a tua primeira vez? Não poderíamos estar a ver televisão durante todo esse tempo? Decerto há quem o faça. Não será este o nosso tão necessário, porventura involuntário, anti-Big Brother? Afinal, a comichão no cabelo da Vanda diz-me muito mais, também eu sofro, do que as pornochanchadas soft, quer dizer, não suficientemente duras, da Tvi.
Encontro aqui bastante humor no destituir o espectador do museu de um vislumbre de “compreensão de museu” da peça, pois se este nem sequer tem hipótese de a abranger. Podiam mesmo reclamar aos burocratas do museu o retorno para ver as restantes horas, sem pagar novo bilhete, para sustentar umas visitas extra ao riquíssimo jardim de Serralves.
Também eu não fiquei muitos minutos no Casal da Boba, em parte, porque não tinha tempo. Mas, tendo lido o texto, voltaria, com uns tupperwares e um termos para não perder pitada, e ali faria acampamento de manhã à noite, ficando lá com eles, solidário. Como vivo em Lisboa, não consegui.
Este “bruto” de oito horas, certo que é corajoso (não sendo certo que seja bruto), mas é-o assim apenas no sentido da produção de um inconciliável com as condições da sua própria apresentação. Apela a um acto também ele corajoso, que digo, custoso, de tentar ver aquilo tudo. Mas não parece ser, de maneira nenhuma, a negação total da “ideia” de cinema, até porque não é original, e o cinema digere bem as suas próprias excepções. O que parece original, mas que sei eu, é o próprio contexto de instalação em que ocorre este suposto bruto de oito horas, que está porventura mais habituado a uma continuidade em que o fragmentário tão desejado se apresenta na repetição dos loops. Aqui, nesta brutalidade de oito horas, não haverá loop, ou quase, pois parece que em Serralves há dias em que a abertura dura pelo menos dez horas. Poderíamos imaginar um espectador perverso, embora o Pedro Costa esteja certamente a contar que esse espectador meramente possível forme um conjunto vazio no final dos dias da projecção, mas quem sabe, alguém poderia fazer a experiência teimosa de ver a Vanda e o Ventura a acordar duas vezes no mesmo dia... Eu fá-lo ia se vivesse no Porto. Em especial, depois de ter lido o “argumento”, como lhe chamas.
Que esse ambíguo registo documental foi transformado em argumento, tens toda a razão. Mas, neste sentido, e atenção à leve ironia, a adaptação é deveras notável. Trata-se realmente de um grande argumento, lindíssimo (veja-se o relato do parto da Vanda), para mais adaptado de algo efectivamente filmado. Pouco importa aqui se o Pedro Costa o foi escrevendo enquanto ia fazendo o filme ou se o discutiu com os participantes do filme que com ele comungam. Há, para mais, divertidas referências das personagens às contingências da sua vida provocadas pelas exigências do realizador “Pedro”, pois o Ventura pode fazer isto ou não se for ou não filmar, ou relata algo de quando estava com ele a filmar, ou está porventura à espera de um dinheiro que presumo aquele lhe irá justamente pagar, etc. Também por isso, quando há alguns anos, em Serpa, um “idiota” perguntou ao Pedro Costa se este “dava dinheiro ou pagava” aqueles que entravam No quarto da Vanda, estava a pôr o dedo numa ferida, a saber, a de que se paga a actores de ficção mas não aos de documentário. São sempre os idiotas que põe os dedos nas feridas, que antecipam, para depois os “inteligentes” inteligirem.
Tal como em No quarto da Vanda, nestes excertos que se bastam de um filme ainda por vir, não se pode dizer de todo que haja um registo documental em bruto, pelo contrário, são também patentes, se bem que, por vezes, não declarados, alguns efeitos conhecidos da ficção, particularmente perversos nestas circunstâncias, fruto das expectativas, talvez até reiteradas pelo dispositivo da instalação. Mas é preciso olhar com atenção. As marcas ficcionais em No quarto da Vanda, como por exemplo, da montagem sonora que faz passar, se bem me lembro, do interior do quarto onde a Vanda canta o Mouraria da Amália para a Zita no exterior a fumar, ou vice-versa, do quarto pressupondo uma televisão na cozinha com uma Paixão ou coisa parecida do Bach em surdina, se calhar até real, etc., são inúmeras.
Em particular, os vídeos de Benfica, Colina do Sol e Pontinha fizeram-me lembrar o último filme do Rithy Panh – Les artistes du théâtre brûlé, de uma estranheza aproximável, na perversão do retomar de uma promíscua ficção onde já ninguém a esperava, um pouco no movimento inverso do Kiarostami mas para chegar a uma confluência, numa complexidade por vezes desagradável, tremendamente ambígua, que obriga a trabalhos-de-casa. Nesta sala em que «dois homens conversam junto a uma janela», na verdade, há também um outro diálogo, ou melhor, e não indiferentemente, relato, de coisas vívidas, das maleitas que se contam, agora com uma concisão encenada, absolutamente precisa. O menos que se pode dizer de elogioso é que nunca ninguém falou assim no cinema, deitado numa cama...
Estando esta personagem deitada a relatar a sua condição a alguém em pé, porque não ficarmos também nós a ouvir de pé? E se, na projecção da direita, outra personagem chamada Paulo, ou o mesmo, para melhor contar a sua história, desliza pela parede e acaba sentada ou de cócoras (não me lembro exactamente) no chão, porque não fazê-lo nós também, se para isso até lá colocaram uma alcatifa!? Tantos anos a ver Ozus e nem nos lembramos de nos descalçar e sentar de pernas cruzadas! Assim, num dos vídeos, o personagem que mais fala está deitado, no outro, senta-se no chão. Talvez uma acção possível para este espectador tão autónomo das instalações, óbvia mas creio que ainda não devidamente explorada, seja a de adoptar precisamente a liberdade corporal de se sentar, correr e tudo o mais que lhe aprouver, no sentido ou contra o que se passa no ecrã. Talvez o Pedro Costa não seja de todo inocente, e envolva as suas instalações da perversão que tanta falta faz ao seu discurso, pretensamente cáustico e infelizmente a raiar o demagógico, e que aí reivindique subterraneamente outro modo de participar no cinema, na sua feitura e também na sua fruição, onde quer que esta se dê, como esta se der.
Há efectivamente coisas para ver ali. Repara como tudo aquilo só pode ser encenado a um ponto extremo, se calhar reclamando uma herança legítima da conhecida monomania pelo ensaio dos Straub-Huillet, que tão bons resultados deu... Ah, a magia da dicção italiana do Sicilia! ou do Operai, contadini, a voz popular restituída pela exaustão do trabalho puramente artificial. Tal como o Straub pantomina uma cena do Mizoguchi no Onde jaz o teu sorriso?, não podemos nós, no dia-a-dia, pantominar Straub-Huillet com o seu “nessuno ne vuole, le arance” do Sicilia! e outros ditos ou gestos que tais? O respeitinho não é nada bonito, mas a falta de disponibilidade, de alegria, ainda menos...
Uma das coisas que dá que pensar nestes filmes do Pedro Costa é a luz: em primeiro lugar, o efeito desrealizante da baixa velocidade de obturação aquando dos movimentos mais bruscos das personagens, efeito que não saberemos se desejado ou apenas insuperável, devido à escassez de fontes de luz natural (outro sinal de um cinema à medida de um corpo magro, de sobrevivência, não apenas de penúria, onde as insuficiências técnicas devem ser colmatadas se possível no filme, mas também na sua visão, destituindo-as do carácter quase sagrado que tomam nos filmes); em segundo lugar, por intermédio do filme, podemos pôr-nos a pergunta: como se pode viver nestas casinhas de bairros sociais com tão pequenas janelas, ainda para mais quase sempre de estores corridos ou cortinas? e o “como” aqui não é o de “como é que é possível!?”, mas o de “em que condições, quer dizer, de que maneira” aí se vive. Há quem tenha visto algumas mudanças de luz estranhas, provocadas talvez pela perturbação de uma possível iluminação artificial, mas eu não reparei. Há algo de igualmente brutal no enquadramento incrível daqueles corpos junto àquelas janelas brilhantes, por sua vez enquadradas ao detalhe na imagem projectada. São poucos os casos, não consigo ainda deles fazer uma leitura... mas que outros procedimentos nos poderão devolver a imagem desta vida à escala de um Portugal dos Pequeninos?
Na última instalação do corredor escuro, o texto é mesmo a “voz” do próprio Ventura, declamado, certo, mas apenas como um simples “não tendo sido eu a escrevê-lo”. E talvez pudesse ter sido, porque não? Que diz o texto que ele não pudesse dizer? Talvez esse “venho de Auschwitz” que lhe impomos. E desde quando dizem as pessoas no cinema o seu próprio texto? Não no documentário banal, onde a sua enunciação é constantemente convocada pelo próprio acto ansioso do “Vá fala, diz de tua justiça... ou pelo menos dos teus assuntos, do que te traz aqui... mas diz qualquer coisa, por favor, legenda este filme!”, numa espécie de acto de fala já circunscrito, tomado, irremediável.
Então é porque vem de lá, desse lugar onde quem fala morre, e agora está aqui a falar, e não está morto? É essa a «violência abusiva», o seu «artifício teatral»? Deve o carimbo “Auschwitz” aplicado ao texto, que de todos os modos começa com «Nha cretcheu, meu amor...» e foi traduzido para o português atravessado pelo crioulo, circunscrever a sua leitura às condições aceitáveis da interpretação prescritas pelo próprio acontecimento-Auschwitz, pretensamente fora do «confusamente político»? Não é ainda um texto escrito em Auschwitz o testemunho de um resto inextinguível de outra coisa, da vida, neste caso, de um amor, de uma «casinha de lava»(!), de tantas coisas pequenas, daquelas palavras aprendidas à beira de se desviarem para o silêncio. Nunca as palavras se desviaram para o silêncio como em Auschwitz, mas não fizeram sempre elas um seu caminho, e ainda hoje, doutra maneira, mais sofisticada, certamente mais plástica, não se continuam a desviar, palavras de morte para uma vida... E ler Auschwitz terá de ser não ler o resto da vida, inclusive do sofrimento, todo tornado incomparável, como se de mundos diferentes se tratasse? E não estão de certa forma as condições da enunciação definidas e presentes nos três a quatro minutos de silêncio que antecedem a declamação da carta e no minuto que a fecha até ao negro? Confesso que não percebo a que chamas o «grau zero da expressão», aqui ou no Kiarostami do Five? Talvez confundas expressão com mensagem ou conteúdo, mas isso seria demasiado mau... Mesmo que fosse para encher, primeiro há que esvaziar, até ao grau zero necessário à construção de cada um.
Julgo que é igualmente um erro não reconhecer a ligação entre as esculturas do Rui Chafes e as instalações (sarcásticas, irónicas) do Pedro Costa. A ligação existe, infelizmente, na pobreza destas esculturas do Chafes que procuram o encontro, tomam mesmo por vezes como nome frases das personagens dos filmes, ou que o podiam ser (“Vê como tremo”, ...), ou que a elas, inconscientemente(?), aludem, como nas gigantescas colheres dos caldos. Mas, se calhar, fui eu que vi mal.
Quanto ao sarcasmo do Pedro Costa, é deveras criativo. Não o das entrevistas reticentes, do género “já vais ver”, a encarnar ele próprio uma qualquer personagem também maldita, mas o sarcasmo das próprias instalações, que ao mesmo tempo se riem de nós, coitados, que nos lamentamos de não dar jeito nenhum estar de pé, dos curadores-comissários (quem?), cheios de medo dos seus “encontros falhados”, do próprio museu... E como é precisa a imagem que nos dás desse «museu moderno asséptico como um hospital». Mas é precisamente por isso que não pode chocar nem brutalizar que aí apareça, como que a despropósito, a «melancolia sem fim de duas pessoas num quarto, ou seus dramas, ou seus sussurros». Pelo contrário, creio que é uma das coisas que faltam aos museus, ocupados como estão a moldar, a operar, enxertar e, menos vezes, a cicatrizar de forma plástica os conceitos, ou melhor, as opiniões trabalhadas da nossa cultura. Não é a crescente citação de filósofos na crítica de artes plásticas um sinal disso? E afinal, não são eles os curadores (versão benigna mas assustadora, do tipo “medicine man”) ou os comissários (versão totalitária ou policial, quiçá mais adequada) da nossa cultura? No entanto, não é de desprezar a sua tarefa, pois ela parece necessária, destituídos como fomos de um certo pensamento de matriz literaria-filosófica e, mais recentemente, de qualquer tipo de reflexão dos jornais.
Mas, quando chamam “Museu do Cinema” à Cinemateca, mesmo com todos os pergaminhos históricos, quer dizer, sendo uma noção com bom pedigree, não será na mesa de operações, de autópsia mesmo, ou em formol, que querem pôr o cinema, os que o amam? É igualmente verdade que os filmes mais interessantes se vêem hoje por vezes, cada vez mais, nas salas dos museus de arte, mais dispostos a acolher essa coisa da programação, excrescência cinematográfica viva com os seus operadores autónomos, e que requer um contexto, por assim dizer, cultural um pouco mais aberto.
Já quanto à «atitude: uma afirmação de violência quotidiana», o que quer dizer? Que a fomenta, apenas por a mostrar, numa das suas formas determinadas? Se fosse assim, seria tão fácil e, ao mesmo tempo, tão penoso... E «a aceitação niilista do limbo», que te parece que é? Porque raio tem a apresentação de algo de veicular a sua aceitação ou promoção? Andas também tu à procura de respostas mais ou menos definitivas, desse particular conforto de não ver ninguém vomitar à tua volta, entre outras coisas desagradáveis, como o poder passar juízos a torto e a direito? Embora, verdade seja dita, no caso do Pedro Costa, parece-me efectivamente estar em causa uma afirmação, especificamente cinematográfica, de um modo de vida, por outras razões que teríamos de detalhar doutra forma. Mas não apenas porque o mostra ou mesmo por com eles partilhar os seus dias e talvez mesmo as noites. Isso só não chega para nada. É também por isso que ele é um grande cineasta, e não um mero ginasta da vontade. E não é por ele viver aqui ao pé ou ser apenas um pouco mais velho, neste país absolutamente aterrorizado pela angústia da influência, que eu não o posso dizer. A sua obra recente é impar e promete, através deste bocados expostos em Serralves, ainda mais. Algo de ainda não feito. Mas não a podemos antecipar, esta obra particular só nasce e é “expressiva” fazendo-se, como ele a faz, incluindo os seus jogos com o museu.
Ao pé disso, que importa se, em entrevista, se faça de monge e nos condene ao inferno político? É talvez o seu discurso de acompanhamento, uma espécie de lamúria da incompreensão, tão típica – se o lermos assim ao de leve; lido mais ao perto, e tem de ser lido extremamente perto – talvez não, haveria de se lhe retirar os nabos da púcara e conseguir perceber o que quer ele dizer quando fala, não apenas quando filma, ou pô-lo a dizer o que não queria e que, no entanto, serviria o filme, fazendo uma aliança contra-natura com ele, para lá do próprio Pedro Costa. Esse pensamento também ele tem de se fazer, trabalhando dia e noite, porque ainda é o que importa. Pouco interessa onde o realizador coloca a discussão do seu trabalho, pois não é a ela que temos de responder, mas ao próprio filme. O que está por fazer, e será talvez difícil, quando não há regras senão imanentes ao próprio trabalho.

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