Voltei a ver o Pesadelo de Darwin (em exibição no Nimas). No fundo queria saber duas coisas: se o filme era tão bom como me parecera da primeira vez, ou tão mau como dizem os críticos; segundo, se a informação que transmite não terá sido demasiado manipulada, escorando-se no efeito emocional da visão do horror manso da existência.
Mas confirmei as minhas impressões iniciais. É um filme extraordinário, sensível, subtil, inteligente - e actuante, no espírito dos espectadores. E por isso acho que toda a gente devia vê-lo, e devia ser obrigatório para todos os políticos (os da grande política, os únicos que podem fazer alguma coisa pelo estado geral do mundo). Este filme sobre “a lei da selva” pode ser uma autêntica revolução conceptual.
O filme transporta ainda uma forte visão estética, mas sem cair num esteticismo que seria obsceno. É extraordinário, por exemplo, como um filme passado sob o sol de África pode parecer tão crepuscular, escuro e sujo. Talvez seja o uso do vídeo e das suas potencialidades estéticas que o permita. Por outro lado, o uso de figuras metafóricas substitui muitas vezes a violência omitida: o homem da torre de comando que mata a vespa, o anúncio da coca-cola que diz “life tastes good”, as carcaças de aviões e de peixes, o rapaz que quer ser aviador perante o olhar embevecido do pai, o mesmo que mostra com um sorriso as suas setas envenenadas; a prostituta assassinada que canta “Tanzania” – canção tornada elegia - no ecrã da câmara de vídeo perante as suas colegas emudecidas. No seio daquela existência penosa e tão próxima da morte, Hubert Sauper consegue dar-nos a ver beleza nas personagens sofridas. E no entanto, o crítico despreza: “falta ritmo cinematográfico a este documentário ambicioso, mas esteticamente nulo” (Mário Jorge Torres no Público de 14-01-2006).
Para mim – em documentário - não é aceitável embelezar o horror, a miséria ou a violência, ou seja, transformar o sofrimento alheio em prazer estético, sem cair numa relação abusiva com o real, numa estética do sofrimento. (Na ficção, no teatro, nas artes plásticas, esse é um caminho possível, porque são representações; mas em documentário, há uma relação intrinsecamente ética com o real.) O realizador sabe evitar o comprazimento, assim como sabe evitar o oposto - fazer-nos sofrer pelos outros gratuitamente. Ele dá-nos, com a máxima delicadeza, acesso a um mundo de pessoas, não de imagens construídas. Ele apela à nossa inteligência, não aos instintos.
Quanto à possível manipulação ideológica, pareceu-me limpa. Ou seja: o argumento do realizador é muito claro, o seu olhar justo e humano, a veracidade dos factos fácil de atestar. Não há caminhos enviesados, postulados ideológicos, lógicas bombásticas ou condicionamentos emocionais. O olhar é sereno, equilibrado, não exaltado. Há uma progressão na denúncia de situações escandalosas, com uma exposição ponderada dos dados em jogo, longe de uma posição “anti-globalização primária” como acusa MJT. Pelo contrário, há uma permanente coerência na associação entre assuntos, capaz de elucidar as diversas facetas de uma realidade complexa. É um filme feito à medida da compreensão do espectador.
[Um parêntesis necessário para dizer que não acreditem numa palavra do que diz o crítico: que o filme” não ultrapassa o chavão mais rasteiro” (será que se refere à disputa feroz por um prato de arroz?); que “evita o cerne da questão” (se não é este, qual será?); que tem uma “visão folclórica do ecologismo” (estará a lembrar-se do filme de propaganda com música à hollywood que é projectado na conferência internacional?); que mostra “um certo ‘oportunismo’ de remexer no obviamente condenável” (obviamente condenável seria ficar calado). É lamentável que o crítico, com a sua arrogância, afaste o público de um filme tão importante.]
O debate a que assisti, na sessão de domingo passado, também ajudou a clarificar algumas questões inevitáveis, todas em volta de: o que podemos fazer? Ou como descartar a culpa? Diana Andringa pôs a pergunta claramente: seremos nós, europeus, os predadores de África, a perca do Nilo que come todos os outros peixes pequenos? Sim, somos, e o nosso presidente é o Cherne. (Nas rotas internacional do comércio de peixe, o cherne, peixe caro, é muitas vezes aldrabado e substituído pela perca, mais barata.)
O que fazer? Boicotar a compra de perca não adianta, só penalizaria o pescador paupérrimo. E, como anuncia o dono de fábrica, começa a ser difícil escoar todo o peixe: “a Europa já está cheia”. São 500 toneladas por dia que chegam para alimentar 2 milhões de europeus - o mesmo número de famintos que há na Tanzânia à espera de ajuda humanitária.
Sugeriu um dos presentes no debate - Jorge Palmeirim da Liga para a Protecção da Natureza - que cabe à Europa regulamentar e exigir, pelo menos, que não sejam importados alimentos (ou outros produtos) que não garantam as boas condições de habitação, salubridade, alimentação e educação das populações que as produzem. Caberia ainda às empresas (produtoras e exportadoras) implantadas nessas regiões prover e assegurar essas condições de vida, visto que, nesses países de terceiro mundo, os governos não possuem receitas de impostos (obtidas a partir de mercados oficialmente regulados) capazes de criar essas infra-estruturas. Que diz a Europa e que diz o Cherne?
3 comentários:
Cada vez com mais vontade de o ver! Já sei que vai estar em breve no "Shopping Cidade do Porto" (vi lá um cartaz a anunciar).
Excelente post! Justo, lúcido e mais uma vez demonstra o quanto percebe do que está a falar. Também fui ver o documentário e sobre ele, a Leonor disse tudo!
Ana
"O pesadelo de Darwin" é um dos documentários mais bem feitos e mais "necessários" que eu já vi. É mesmo um grande filme que, como dizes, toda a gente deveria ver.
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