03 janeiro 2006

Re: Re: Cruzamentos genéticos

Pois, também eu tenho pena de não ter visto mais extensamente o filme de 8 horas, principalmente depois de ler o texto e principalmente por ter tido falta de tempo naquele dia, mas espero voltar ao Porto e postar-me diante do ecrã todo o tempo que me apetecer. 8 horas seria a primeira vez. Sem dúvida que há humor nesse desafio, e mesmo sarcasmo. Mas quando falo de um grau zero da expressão, quero dizer duas coisas: o acto de regressar - em cinema - ao ponto de partida, o do registo puro, que vive como transposição e reflexo de um real; o acto de abdicar de um discurso pessoal - expressivo - interior ao cinema, se bem que por meio dele se manifeste uma atitude. É esta atitude que eu questiono quando pergunto o que leva Costa e Kiarostami - ambos com uma visão totalmente idiossincrática, pujante e de vanguarda no cinema narrativo - a uma anulação minimal dessa expressão pessoal. Pergunto, mas não sei responder.

É certo que exagero quando digo que é a negação total da ideia de cinema. Não é. É apenas a afirmação total de uma outra ideia de cinema que: ou volta ao ponto original da imagem cinematográfica ou nega a outra ideia de cinema que, embora preponderante, hoje parece esgotar-se depois de muito espremida. No entanto, não acho que estejam esgotados todos os caminhos do cinema, embora por vezes sinta essa asfixia. Não vejo o panorama negro. Mas vejo às vezes cinzento. E mantenho a minha pergunta sem resposta.

Por outro lado, como também dizes, o gesto de expor um bruto de filmagem no espaço amplo e hospedeiro de um museu onde ele quase não cabe (em tempo) é que é corajoso, surpreendente e interessante. Tão interessante que ainda me faltam palavras para o descrever. Mas apesar disso, o tempo não está tomado ali como factor de recepção, ou seja, se eu soubesse antes de ver que um filme tinha 8 horas e outro 10 minutos, a minha predisposição para ver e entender um e outro seria muito maior. Desprevenida, fiz como toda a gente, entrei e saí, ainda sem chaves de leitura.

Tens toda a razão quando dizes que se um homem está de pé à janela e o outro sentado no chão (?) porque não haveremos nós de estar como eles... Mas falas de encenação... - tenho que ir ver melhor. Também não tenho a certeza de te perceber quando falas do "discurso, pretensamente cáustico e infelizmente a raiar o demagógico"...

A alusão a um pagamento, escapou-me se lá estava. O que no texto do folheto me chamou a atenção para as circunstâncias de filmagem foi eles falarem do "Pedro" como se ele lá não estivesse. Terá deixado a câmara a filmar sozinha? little brother com outra ética? Anti-ética? Outra coisa que me intriga é que o texto do folheto não parece chegar para as 8 horas, e quero voltar lá para ver o que mais tem, se há outros planos, etc.

No filme do corredor: gostei da instalação propriamente, a caverna e a aparição. Em relação ao texto de Auschwitz posto na boca de Ventura: "talvez pudesse ter sido, porque não? Que diz o texto que ele não pudesse dizer?"- dizes. Essa transposição é que achei brutal, i.e., violenta, acusatória, e exagerada, descabida, deslocada das outras cenas, injustificada na lógica das outras. Justificada numa lógica teatral, sim. E qual a diferença afinal? Para mim, faz toda a diferença. No fundo, as três salas não têm uma unidade, aquilo que de certa maneira e por preguiça presumimos quando vamos a um museu, presumi eu. As três peças são três caminhos diferentes, três experimentações cinemáticas a partir de um ponto de partida comum (o grau zero, a refundação de uma linguagem?)

Não há nada de desajustado nessa melancolia sem fim num museu asséptico. O que está desajustado são os usos que ele tem: a sacralização controlada da irreverência, o aburguesamento das imagens, a superficialidade total dos conceitos justificativos, o policiamento obcessivo dos seguranças, a opressão medonha do edifício (que não atribuo ao arquitecto, mas às mil câmaras de bigbrother), o envolvimento dos comissários iluminados em jogos de muito dinheiro, a fraqueza dos artistas na ronda da adulação do ego e da carteira. Tudo isto me incomoda muito mais, quando vejo ali as obras do Pedro Costa, que são inquietantes exactamente pelo descaramento de insultar a instituição e o seu público. Mas o insulto não passa. As pessoas vão ao museu para passear e comer bem.

Não, não digo que ele fomenta a violência, digo apenas que ele afirma que existe. Mas afirma no local onde ela não é ouvida. Mas onde é absorvida, digerida e esquecida. Talvez o PC ache suficientemente violento o seu gesto - como eu o reconheço - mas, por enquanto, duvido que fosse o gesto que ele escolheu, porque sei que foi um convite. E porque se percebe nas declarações que fez nos jornais que isso não é para ele pacífico nem fácil nem satisfatório. Compraram-lhe a revolta. Ele encontrou uma solução, uma saída honrosa. Mas terá encontrado um caminho?

Quando falei da "aceitação niilista do limbo", não me referia à atitude do autor - tanto que a sua atitude é muito minimal aqui - mas à atitude do representado, que se erige como visão estética - ou como modo de vida, dizes tu?. Talvez esteja a ser moralista. Mas não é menos tendencioso ver ali revolta. Não me incomoda ver "vomitar" (a metáfora que usas), mas, apesar de admirar o trabalho do PC, não me reconheço esteticamente nele. Talvez essa seja a minha limitação, a partir da qual não contive a expressão adjectivada de um juízo... (A mesma reacção subjectiva manifestei em relação ao Chafes...)

Concordo que as regras de leituras são imanentes à obra. E essa hermenêutica não é fácil, mas é nela que aposto.

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